"Passar de
espectador à ator"
Sexta-Feira Santa:
Pregação do Padre Raniero Cantalamessa
CIDADE DO
VATICANO, sexta-feira, 06 de abril de 2012 (ZENIT.org) -
Publicamos o texto integral da pregação do padre Raniero Cantalamessa, O.F.M.
Cap., pregador da Casa Pontifícia, nesta Sexta-Feira Santa 2012, realizada na
Basílica de São Pedro.
Pe. Raniero
Cantalamessa, ofmcap.
"Estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos”
(Apocalipse 1,18)
Alguns Padres da
Igreja colocaram numa imagem todo o mistério da redenção. Imagina, dizem, que
aconteceu, no estádio, uma luta épica. Um herói enfrentou o cruel tirano que
escravizava a cidade e, com enorme esforço e sofrimento, o venceu. Você estava
na arquibancada, não lutou, não se esforçou e nem teve feridas. Mas, se você
admira o herói, se se alegra com ele pela vitória, se tece-lhe uma coroa, se
anima e exalta a platéia por ele, se se ajoelha com alegria diante do vencedor,
beija a sua cabeça e aperta a sua mão direita; em suma, se tanto se exalta por
ele, a tal ponto de considerar como sua a vitória dele, eu lhe digo que você
terá com certeza parte no prêmio do vencedor.
E tem mais:
suponha que o vencedor não tenha nenhuma necessidade do prêmio que conquistou
para si, mas que deseje, mais do que qualquer outra coisa, ver o seu admirador
honrado e considere que o prêmio da sua luta seja a coroação do seu amigo, em
tal caso aquele homem não terá talvez a coroa, mesmo sem ter lutado e sem ter
feridas? Claro que vai! (Nicola Cabasilas, Vita in Christo, I, 9 (PG 150, 517).
Dessa forma, dizem
esses Padres, acontece com Cristo e conosco. Ele, na cruz, derrotou seu antigo
adversário. “As nossas espadas – exclama São João Crisóstomo – não estão sujas
de sangue, não estivemos na arena, não temos lesões, nem sequer vimos a
batalha, e eis que temos a vitória. Sua foi a luta, nossa a coroa. E porque
também nós vencemos, imitemos o que os soldados fazem nesse caso: com vozes de
alegria exaltemos a vitória, entoemos hinos de louvor ao Senhor” (S. João
Crisóstomo, De coemeterio et de cruce; PG, 49, 596). Não poderia ser explicado
melhor o significado da liturgia que estamos celebrando.
***
Mas o que estamos
fazendo é, em si, uma imagem, a representação de uma realidade passada, ou é a
própria realidade? Ambas as coisas! "Nós – dizia Santo Agostinho ao povo –
sabemos e acreditamos com fé certíssima que Cristo morreu só uma vez por nós
[...]. Sabeis perfeitamente bem que tudo isto foi feito apenas uma vez e ainda
assim a solenidade periodicamente o renova [...]. Verdade histórica e
solenidade litúrgica não estão em contradição entre si, como se a segunda fosse
falácia e somente a primeira correspondesse à verdade. Do que a história afirma
ter acontecido uma só vez na realidade, a solenidade renova muitas vezes a
celebração nos corações dos fiéis” (S. Agostinho, Sermone 220; PL 38, 1089).
A liturgia
"renova" o evento: quantas discussões, durante cinco séculos até
hoje, sobre o sentido desta palavra, especialmente quando é aplicada ao
sacrifício da cruz e à Missa! Paulo VI usou um verbo que poderia pavimentar o
caminho para uma compreensão ecumênica sobre tal argumento: o verbo
“representar”, compreendido no sentido forte de reapresentar, ou seja tornar
novamente presente e operante o acontecido”( Cf Paolo VI, Mysterium fidei (AAS
57, 1965, p. 753 ss).
Há uma diferença
substancial entre a representação da morte de Cristo e aquela, por exemplo, da
morte de Júlio César na tragédia homônima de Shakespeare. Ninguém assiste,
estando vivo, o aniversário da própria morte; Cristo sim, porque ressuscitou.
Somente Ele pode dizer, como faz no Apocalipse: "Estive morto, mas eis que
estou vivo pelos séculos dos séculos” (Ap 1,18). Devemos ter cuidado neste dia,
visitando os chamados "sepulcros" ou participando nas procissões do
Cristo morto, de não merecermos a censura que o Ressuscitado dirigiu às
piedosas mulheres na manhã de Páscoa: "Por que procurais Aquele que vive
entre os mortos?" (Lc 24,5).
É uma afirmação
ousada, mas verdadeira aquela de certos autores ortodoxos. “A anamnese, ou
seja, o memorial litúrgico, faz o evento mais verdadeiro do que quando
aconteceu historicamente pela primeira vez". Em outras palavras, mais real
e verdadeiro para nós que o revivemos “segundo o Espírito”, do que para aqueles
que o viveram "segundo a carne", antes que o Espírito Santo revelasse
à Igreja o pleno significado.
Não estamos apenas
comemorando um aniversário, mas um mistério. É ainda Santo Agostinho que explica
a diferença entre as duas coisas. Na celebração “à maneira de aniversário”, não
se pede outra coisa – diz – mais do que “indicar com uma solenidade religiosa o
dia do ano no qual cai a lembrança do mesmo acontecimento”; na celebração a
modo de mistério (“em sacramento”), “não somente se comemora um acontecimento,
mas é feito também de tal forma que se entenda o seu significado e seja
acolhido santamente” (Agostinho, Epistola 55, 1, 2; CSEL 34, 1, p. 170)
Isso muda tudo.
Não se trata somente de assistir a uma representação, mas de “acolher” o
significado, de passar de espectador à ator. Cabe a nós portanto escolher qual
parte queremos representar no drama, quem queremos ser: se Pedro, se Judas, se
Pilatos, se a multidão, se o Cireneu, se João, se Maria ... Ninguém pode
permanecer neutro; não tomar partido, é tomar um bem preciso: aquele de Pilatos
que lava as mãos, ou da multidão que de longe "permanecia lá, a olhar
" (Lucas 23, 35).
Se voltando para
casa, nesta tarde, alguém nos perguntar: "De onde vens? Onde
estivestes?", respondamos, portanto, pelo menos em nossos corações:
"No Calvário!"
***
Mas nada disso
acontece automaticamente, só porque participamos nesta liturgia. Trata-se,
dizia Agostinho, de “acolher” o significado do mistério. Isto acontece com a
fé. Não há música, onde não há um ouvido que a escute, por mais que a orquestra
toque forte; não há graça, onde não há uma fé que a acolha.
Numa homilia de
Páscoa do século IV, o bispo pronunciava estas palavras surpreendentemente
modernas e, por assim dizer, existenciais: "Para cada homem, o princípio
da vida é aquele, a partir do qual Cristo foi imolado por ele. Mas Cristo é
imolado por ele quando ele reconhece a graça e se torna consciente da vida que
lhe foi dada por aquela imolação”(Homilia pascal do ano 387; SCh 36, p. 59 s.)
Isso aconteceu
sacramentalmente no Batismo, mas deve sempre acontecer conscientemente de novo
na vida. Devemos, antes de morrer, ter a coragem de fazermos um golpe de
audácia, quase como um golpe de mão: apropriar-nos da vitória de Cristo. A
apropriação indevida! Uma coisa comum infelizmente na sociedade na qual
vivemos, mas com Jesus essa não somente não está proibida, mas é sumamente
recomendada. “Indevida” aqui significa que não nos é devido, que não nos é
merecido, mas nos é dado gratuitamente, pela fé.
Mas andemos com
passos firmes; escutemos um doutor da Igreja. “Eu – escreve São Bernardo
- , o que não posso obter por mim mesmo, o aproprio (literalmente, o usurpo!) com confiança do lado aberto do Senhor, porque está cheio de misericórdia. Meu mérito, por isso, é a misericórdia de Deus. Não sou tão pobre de méritos, enquanto ele seja rico de misericórdia. Que se as misericórdias do Senhor são muitas (Sl 119, 156), eu porém terei muitos méritos. E o que acontece com a minha justiça? Ó Senhor, me lembrarei somente da tua justiça. De fato, ela é também a minha, porque tu es para mim justiça de Deus" (cf. 1 Cor 1, 30) (S. Bernardo de Claraval, Sermoni sul Cantico, 61, 4-5; PL 183, 1072).
- , o que não posso obter por mim mesmo, o aproprio (literalmente, o usurpo!) com confiança do lado aberto do Senhor, porque está cheio de misericórdia. Meu mérito, por isso, é a misericórdia de Deus. Não sou tão pobre de méritos, enquanto ele seja rico de misericórdia. Que se as misericórdias do Senhor são muitas (Sl 119, 156), eu porém terei muitos méritos. E o que acontece com a minha justiça? Ó Senhor, me lembrarei somente da tua justiça. De fato, ela é também a minha, porque tu es para mim justiça de Deus" (cf. 1 Cor 1, 30) (S. Bernardo de Claraval, Sermoni sul Cantico, 61, 4-5; PL 183, 1072).
Talvez esta forma
de conceber a santidade tenha feito São Bernardo menos zeloso das boas obras,
menos comprometido na aquisição das virtudes? Talvez negligenciasse mortificar
o seu corpo e reduzí-lo a escravidão (cf. 1 Cor 9, 27), aquele que, antes de
todos e mais do que todos, tinha feita desta apropriação da justiça de Cristo o
objetivo da sua vida e da sua pregação (cf. Fl 3, 7-9)?
Em Roma, como
infelizmente em todas as grandes cidades, há muitos moradores de rua. Existe um
nome para eles em todas as línguas: homeless, clochards, sem-teto: seres humanos
que não têm mais do que poucos trapos que carregam e algum objeto que trazem
consigo em sacos plásticos. Imaginemos que um dia se espalha a notícia: Na rua
Condotti (todos sabemos o que é a rua Condotti em Roma!) há uma boutique
luxuosa que, por razões desconhecidas, de interesse ou de generosidade, convida
todos os moradores de rua da Estação Termini a virem para o seu negócio; lhes
convida a tirar os seus trapos imundos, a tomar um bom banho e depois a
escolher o vestido que desejam entre aqueles exibidos e levá-los, assim, de
graça.
Todos dizem entre
si: “Isto é um conto de fadas, nunca acontece”. Verdadeiríssimo, mas o que
nunca acontece entre os homens é o que pode acontecer a cada dia entre os
homens e Deus, porque, diante Dele, aqueles moradores de rua somos nós! É o que
acontece conosco depois de uma boa confissão: tire as suas roupas sujas, os
pecados, receba o banho da misericórdia e levante-se que estás “revestido das
vestes da salvação, coberto com um manto de justiça” (Isaías 61, 10).
O publicano da
parábola subiu ao templo para orar; disse simplesmente, mas do fundo do
coração: "Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador!", e "voltou
para casa justificado" (Lc 18, 14), reconciliado, feito novo, inocente. O
mesmo, se temos a sua fé e o seu arrependimento, se poderá dizer de nós
voltando à casa depois desta liturgia.
***
Entre os
personagens da paixão que podemos nos identificar percebo que deixei de citar
um, que mais do que ninguém, espera quem lhe siga o exemplo: o bom ladrão.
O bom ladrão faz
uma confissão completa dos pecados; diz ao seu companheiro que insulta Jesus:
“Nem sequer temes a Deus, estando na mesma condenação? Quanto a nós, é de
justiça; estamos pagando por nossos atos; mas ele não fez nenhum mal” (Lc 23,
40 ss.). O bom ladrão se mostra aqui um excelente teólogo. Só Deus de fato, se
sofre, sofre absolutamente como inocente; qualquer outro ser que sofre deve
dizer: "Eu sofro com justiça," porque, embora não seja responsável
pela ação imputada, nunca está totalmente sem culpa. Só a dor das crianças
inocentes é semelhante àquela de Deus e por isso é tão misteriosa e tão
sagrada.
Quantos crimes
atrozes que permanecem, nos últimos tempos, sem culpados, quantos casos não
resolvidos! O bom ladrão faz um apelo aos responsáveis: façam como eu, venham à
luz, confessem a vossa culpa; experimentareis também vós a alegria que eu senti
quando ouvi a palavra de Jesus: “Hoje estarás comigo no paraíso!” (Lc 23, 43).
Quantos réus confessos podem confirmar que foi assim também para eles: que
passaram do inferno ao paraíso no dia que tiveram a coragem de arrepender-se e
confessar a sua culpa. Eu também conheci alguns. O paraíso prometido é a paz da
consciência, a possibilidade de olhar-se no espelho ou olhar para os próprios
filhos sem ter que desprezar-se.
Não carreguem
convosco até o túmulo o vosso segredo; encontraríeis uma condenação muito mais
temível do que aquela humana. O nosso povo não é cruél com quem errou mas
reconhece o mal feito, sinceramente, não somente por algum interesse. Pelo
contrário! Está pronto para ter pena e acompanhar o arrependido no seu caminho
de redenção (que de qualquer forma, torna-se mais curto). "Deus perdoa
muitas coisas, por uma obra boa", diz Lucia ao Inominável no “Os Noivos”.
Ainda mais, devemos dizer, que ele perdoa muitas coisas por um ato de
arrependimento. Ele prometeu solenemente: “Mesmo que os vossos pecados sejam
como escarlate, tornar-se-ão alvos como a neve; ainda que sejam vermelhos como
o carmesim tornar-se-ão como a lã” (Is 1, 18).
Continuemos a
fazer o que, como escutamos no início, é a nossa tarefa neste dia: com vozes de
alegria exaltemos a vitória da cruz, entoemos hinos de louvor ao Senhor. “O
Redemptor, sume carmen temet concinentium"( Hino do Domingo de Ramos e da
Missa crismal da Quinta-feira Santa): E vós, ó nosso Redentor, aceite o canto
que elevamos para vós.
[Tradução Thácio
Siqueira]
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