São Basílio
e a fé no Espírito Santo
Terceira
Pregação de Quaresma do Padre Raniero Cantalamessa
CIDADE DO
VATICANO, sexta-feira, 23 de março de 2012 (ZENIT.org) -
Publicamos o texto da terceira pregação de Quaresma do padre Raniero
Cantalamessa, O.F.M.Cap., pregador da Casa Pontifícia, tida nesta manhã na
Capela "Redemptoris Mater” no Vaticano.
***
1. A fé
termina nas coisas
O filósofo
Edmund Husserl resumiu o programa da sua fenomenologia no lema: Zu den Sachen
selbst!, dirigir-se para as mesmas coisas, para as coisas como elas realmente
são na realidade, antes da conceituação e formulação delas. Outro filósofo,
vindo depois dele, Sartre, diz que "as palavras e, com elas, o significado
das coisas e os modos do seu uso” são apenas “os sinais sutis de reconhecimento
que os homens têm traçado na superfície deles": é necessário superá-los
para ter a súbita revelação, que tira o fôlego, da "existência" das
coisas (J.-P. Sartre, La Nausea, trad.
ital, Milano 1984, p. 193 s, Tradução Portuguesa nossa).
Santo Tomás
de Aquino tinha formulado muito antes um princípio análogo em referência às
coisas ou aos objetos da fé: "Fides non terminatur ad enunciabile, sed ad
rem”: a fé não termina nos enunciados, mas na realidade (Tomas de Aquino, Suma teologica, II-IIae , q.
1,a.2,ad 2.). Os Padres da Igreja são modelos insuperáveis desta fé que não
para nas fórmulas, mas vai até a realidade. Tendo passado esta era de ouro dos
grandes padres e doutores, vemos quase que imediatamente o que um estudioso do
pensamento patrístico define “o triunfo do formalismo" [Cf. G.
Prestige, God in Patristic Thought, London
1936, chap. XIII( trd. Ital., Dio nei pensiero dei Padri,
Bologna, il Mulino, 1969, pp. 273 ss), Tradução portuguesa nossa]. Conceitos e
termos, como substância, pessoa, hipóstase, são analisados e estudados por si
mesmos, sem a constante referência à realidade que com eles os criadores do
dogma tinham tentado expressar.
Atanásio é
talvez o caso mais exemplar de uma fé que está mais preocupada com o conteúdo
do que com o seu enunciado. Por algum tempo, depois do Concílio de Nicéia, ele
parece quase ignorar o termo homousios, consubstancial, embora defendendo com a
tenacidade que vimos na última vez o seu conteúdo, ou seja, a plena divindade
do Filho e a sua igualdade com o Pai. Também está pronto para acolher termos
equivalentes para ele, desde que ficasse claro que se pretendia manter firme a
fé de Nicéia. Só mais tarde, quando ele percebeu que aquele termo era o único
que não deixava brechas para as heresias, fez cada vez mais uso dele.
Destacamos
isto porque conhecemos os danos que causados à comunhão eclesial o fato de dar
mais importância ao acordo dos termos do que ao conteúdo da fé. Nos últimos
anos tem sido possível restaurar a comunhão com algumas igrejas orientais, as
assim chamadas monofisitas, tendo reconhecido que o contraste deles com a fé de
Calcedônia estava no significado diferente atribuído aos termos ousia ehipóstase, e não na substância
da doutrina. Também o acordo entre a Igreja Católica e a Federação Mundial das
Igrejas Luteranas sobre o tema da justificação pela fé, assinado em 1998,
mostrou que o conflito secular sobre este ponto estava mais nos termos do que na
realidade. As fórmulas, uma vez inventadas, tendem a fossilizar-se, tornando-se
bandeiras e sinais partidárias, ao invés de expressões de fé vivida.
2. São
Basílio e a divindade do Espírito Santo
Hoje subimos
nos ombros de um outro gigante, São Basílio o Grande (329-379), para analisar
com ele, uma outra realidade da nossa fé, o Espírito Santo. Veremos em breve
como também ele é um modelo da fé que não pára nas fórmulas mas vai até a
realidade.
Sobre a
divindade do Espírito Santo, Basílio não fala nem a primeira e nem a última
palavra, ou seja não é aquele que abre o debate e nem sequer aquele que o
conclui. Quem abriu a discussão sobre o estatuto ontológico do Espírito foi
Santo Atanásio. Até ele, a doutrina sobre o Paráclito permaneceu na sombra, e
entendemos o motivo: naõ era possível definir a posição do Espírito Santo na
divindade, antes de ter definido aquela do Filho. Somente se limitava a dizer
no símbolo de fé: “e creio no Espírito Santo”, sem outros acréscimos.
Atanásio,
nas Cartas a Serapião, inicia o debate que levará à definição da divindade do
Espírito Santo no Concílio de Constantinopla em 381. Ensina que o Espírito é
plenamente divino, consubstancial com o Pai e com o Filho, que não pertence ao
mundo das criaturas, mas ao do criador e a prova, também aqui, é que o seu
contato nos santifica, nos diviniza, coisa que não poderia fazer se não fosse
ele mesmo Deus.
Eu disse que
Basílio não falou nem sequer a última palavra. Ele se abstém de aplicar ao
Paráclito o título de "Deus" e aquele de "consubstancial".
Afirma claramente a fé na plena divindade do Espírito usando expressões
equivalentes, como a igualdade com o Pai e o Filho na adoração (a isotimia), a
sua homogeneidade e não heterogeneidade, no que diz respeito a eles. São os
termos nos quais a divindade do Espírito Santo foi definida no Concílio
Ecumênico de Constantinopla do ano 381 e que constroem o artigo de fé sobre o
Espírito Santo que professamos ainda hoje no credo.
Essa atitude
prudencial de Basílio, dirigida a não distanciar ainda mais o partido
adversário dos Macedonianos, provocou-lhe a crítica de Gregório Nazianzeno que
coloca o amigo entre aqueles que tiveram bastante coragem para pensar que o
Espírito Santo seja Deus, mas não o bastante para proclamá-lo tal
explicitamente. Quebrando todo atraso, ele escreve: "O Espírito é portanto
Deus? Certamente! É consubstanciais? Sim, se é verdade que é Deus"
(Gregorio Nazianzeno, Oratio 31,
5.10; cf. também Oratio 6:
“Até quando esconderemos a lâmpada debaixo do móvel e não proclamaremos em alta
voz a plena divindade do Espírito Santo?”).
Se,
portanto, Basílio não fala, sobre a teologia do Espírito Santo, nem a primeira
nem a última palavra, por que escolher justamente ele como nosso mestre de fé
no Paráclito? É que Basílio, como já Atanásio, está mais preocupado pela
“coisa” do que pela sua formulação, mais pela plena divindade do Espírito do
que pelos termos com os quais expressar essa fé. O que mais lhe interessa, para
colocá-lo nos termos de Tomás de Aquino, é a coisa e não a sua enunciação. Ele
nos transporta no coração da pessoa e da ação do Espírito Santo.
Basílio tem
uma Pneumatologia concreta, vivida, não escolástica, mas “funcional” no sentido
mais positivo do termo, e é aquele que a faz particularmente atual e útil para
nós hoje. Por causa da conhecida questão do Filioque, a pneumatologia acabou
restringindo-se nos séculos, quase que exclusivamente, ao problema do modo da
procissão do Espírito Santo: se somente do Pai como dizem os orientais, ou
também do Filho, como professam os latinos. Algo da pneumatologia concreta dos
Padres foi passada nos tratados sobre "Os Sete Dons do Espírito
Santo", mas limitado ao âmbito da santificação pessoal e à vida
contemplativa.
O Concílio
Vaticano II iniciou uma renovação neste campo, por exemplo, quando passou os
carismas da hagiografia, ou seja da vida dos santos, para a eclesiologia, ou
seja para a vida da Igreja, falando deles na Lumen Gentium (Cfr. Lumen gentium, 12.). Mas foi apenas
um começo; ainda há muito a ser feito para destacar a ação do Espírito Santo em
toda a vivência do povo de Deus. Na ocasião do XVI centenário do Concílio
Ecumênico de Constantinopla do 381, o Beato João Paulo II escreveu uma carta apostólica
na qual entre outras coisas dizia: "Todo o trabalho de renovação da Igreja
que o Concílio Vaticano II tão providencialmente propôs e começou ... não pode
ser realizado a não ser no Espírito Santo, isto é, com a ajuda da sua luz e da
sua força" (João Paulo II. “Em Concílio Costantinopolitano I”, em AAS 73,
1981, p. 521.). Basílio, veremos, será nosso guia neste caminho.
3. O Espírito Santo na história da salvação e
na Igreja
É
interessante conhecer a origem do seu tratado sobre o Espírito Santo. Curiosamente
está ligada à oração do Gloria Patri. Durante uma liturgia, Basílio tinha
pronunciado a doxologia às vezes na forma: "Glória ao Pai, por meio do
Filho, no Espírito Santo”, às vezes sob a forma: "Glória ao Pai e ao Filho
e ao Espírito Santo". Esta segunda forma esclarecia mais que a primeira a
igualdade das três pessoas, coordenando-as, ao invés de subordiná-las, entre
si. Na atmosfera superaquecida das discussões sobre a natureza do Espírito
Santo, a coisa provocou protestos e Basílio escreveu a sua obra para justificar
as suas ações; na prática, para defender contra os hereges macedonianos a plena
divindade do Espírito Santo.
Mas vamos
direto ao ponto que faz a doutrina de Basílio especialmente atual: a sua
capacidade de destacar a ação do Espírito em cada momento da história da
salvação e em cada setor da vida da Igreja. Começa da obra do Espírito na
criação.
"Na
criação dos seres a causa primeira de tudo o que existe é o Pai, a causa
instrumental o Filho, a causa aperfeiçoadora é o Espírito. É pela vontade do
Pai que os espíritos criados subsistem; é pela força operativa do Filho que são
conduzidos ao ser e pela presença do Espírito que chegam à perfeição... Se
tentas tirar o Espírito da criação, todas as coisas se misturarão e a vida
delas aparece sem lei, sem ordem, sem qualquer determinação"
(Basílio, Sobre o Espírito Santo, XVI,
38 (PG 32, 137B); trad. ital. di E. Cavalcanti, L’esperienza di Dio nei Padri Greci,
Roma 1984, Tradução portuguesa nossa).
Santo
Ambrósio retomará de Basílio este pensamento tirando dele uma conclusão
sugestiva. Referindo-se aos primeiros dois versos do Gênesis (“a terra estava
deserta e sem forma e as trevas cobriam o abismo”) ele observa:
"Quando
o Espírito começou a pairar sobre isso, o criado não tinha ainda nenhuma
beleza. Em vez disso, quando a criação recebeu a operação do Espírito, obteve
todo este esplendor de beleza que a fez brilhar como 'mundo' "
(Ambrogio, Sobre o Espírito Santo, II, 32.).
Em outras
palavras, o Espírito Santo é aquele que faz o criado passar do caos para o
cosmos, que faz dele algo belo, ordenado, limpo: um “mundo” (mundus)
precisamente, de acordo com o significado original desta palavra e da
palavra grega cosmos. Agora nós sabemos que a ação criadora de Deus não se
limita ao instante inicial, como se acreditava na visão deísta ou mecanicista
do universo. Deus não “foi” uma vez, mas sempre “é” criador. Isso significa que
Espírito Santo é aquele que faz passar o universo, a Igreja e cada pessoa, do
caos ao cosmos, ou seja: da desordem à ordem, da confusão à harmonia, da
deformidade à beleza, do velho ao novo. Não, é claro, mecanicamente e
abruptamente, mas no sentido de que está trabalhando nela e guia a sua evolução
para uma finalidade. Ele é aquele que sempre “cria e renova a face da terra” (cf.
Sl 104,30).
Isso não
significa, explicava Basílio naquele mesmo texto, que o Pai tinha criado algo
imperfeito e “caótico” que tinha necessidade de correções; simplesmente, era o
plano e a vontade do Pai de criar por meio do Filho e conduzir os seres à
perfeição por meio do Espírito.
Da criação o
santo Doutor passa a ilustrar a presença do Espírito na obra da redenção:
"No que
diz respeito ao plano de salvação (oikonomia) para o homem por obra do nosso
grande Deus e salvador Jesus Cristo, estabelecido segundo a vontade de Deus,
quem poderia negar que se realiza por meio da graça do Espírito?"
(Basílio, Sobre o Espírito Santo, XVI, 39.).
Chegando
aqui, Basílio se abandona a uma contemplação da presença do Espírito na vida de
Jesus que está entre as passagens mais bonitas da obra e abra à pneumatologia
um campo de pesquisa que só recentemente começou a ser reconsiderado
(J.D.G.Dunn, Jesus and the Spirit, London
1988.). O Espírito Santo está em ação já no anúncio dos profetas e na
preparação para a vinda do Salvador; é pelo seu poder que se realiza a
encarnação no seio de Maria; é ele o crisma com o qual Jesus foi ungido por
Deus no batismo. Toda obra sua foi realizada com a presença do Espírito. Este
"estava presente quando foi tentado pelo diabo, quando fazia milagres, não
o deixou quando ressuscitou dos mortos, e no dia da Páscoa o derramou sobre os
discípulos (cf. Jo 20, 22 s.). O Paráclito foi "o companheiro
inseparável" de Jesus ao longo da sua vida.
Da Vida de
Jesus, São Basílio passa a ilustrar a presença do Espírito na Igreja:
"E a
organização da Igreja, não é claro e indiscutível que é obra do Espírito? Ele
próprio deu à Igreja, diz Paulo, 'em primeiro lugar os apóstolos, depois os
profetas, depois os mestres ... Esta ordem está organizada de acordo com a
diversidade dos dons do Espírito" (Basilio, Sobre o Espírito Santo, XVI, 39).
Na anáfora
que leva o nome de São Basílio - que a nossa atual Oração Eucarística IV tem
seguido de perto -, o Espírito Santo tem um lugar central.
A última
imagem retrata a presença do Paráclito na escatologia: "Também no momento
do evento da esperada manifestação do Senhor aos céus – escreve Basílio – não
está ausente o Espírito Santo”. Neste momento haverá, para os salvos, a
passagem das “primícias” para a posse plena do Espírito” e para os réprobos a
separação definitiva, o corte claro, entre a alma e o Espírito (Ib. XVI, 40.).
4. A
alma e o Espírito
São Basílio
não fica, porém, com a ação do Espírito na história da salvação e na Igreja. De
ascético e homem espiritual, o seu principal interesse é pela ação do
Espírito na vida de cada batizado. Embora ainda sem estabelecer a distinção e a
ordem das três vias que se tornarão clássicas mais tarde, ele destaca maravilhosamente
a ação do Espírito Santo na purificação da alma do pecado, na sua iluminação e
na divinização que ele chama também “intimidade com Deus” (Ib. XIX, 49.).
Só podemos
ler a página na qual, em referência constante com as Escrituras, o santo
descreve essa ação e deixar-nos conquistar pelo seu entusiamo:
"A
relação de familiaridade do Espírito com a alma, não é uma aproximação no
espaço – de fato, como poderia aproximar-se o incorpóreo corporalmente? –
mas, em vez disso, consiste na exclusão das paixões, as quais, como
consequência da sua atração pela carne, chegam à alma e a separam da união com
Deus. Purificados da imundicie da qual tinha se sujado por meio do pecado e
voltado para a beleza natural, como tendo restituido à uma imagem real a antiga
forma por meio da purificação, só assim é possível aproximar-se do Paráclito.
Ele, como um sol, reconhecendo o olho purificado, te mostrará em si mesmo a
imagem do invisível. Na beata contemplação da imagem, verás a inefável beleza
do arquétipo. Por meio dele se elevam os corações, os fracos são levados pela
mão, aqueles que progridem atingem a perfeição. Ele, iluminando aqueles que
foram purificados de toda mancha, torna-os espirituais através da comunhão com
ele. E como os corpos claros e transparentes, quando um raio os atinge,
tornam-se eles próprios brilhantes e refletem um outro raio, assim as almas
portadoras do Espírito são iluminadas pelo Espírito; elas mesmas se tornam
plenamente espirituais e transmitem aos outros a graça. Daqui vem a presciência
das coisas futuras; a compreensão dos mistérios; a percepção das coisas
ocultas; as distribuições dos carimas, a cidadania celeste; a dança com os
anjos; a alegria sem fim; a permanência em Deus; a semelhança com Deus; o
cumprimento dos desejos: tornar-se Deus” (Ib. IX,23.)
Não foi
difícil para os estudiosos descobrir por detrás do texto de Basílio imagens e
conceitos derivados da Enéade de Plotino e falar, a este respeito, de uma
infiltração estranha no corpo do cristianismo. Na verdade, trata-se de um tema
puramente bíblico e paulino que se expressa, como era correto, em termos
familiares e significativos para a cultura do tempo. Na base de tudo Basílio
não coloca a ação do homem – a contemplação – , mas a ação de Deus e a imitação
de Cristo. Estamos na antítese da visão de Plotino e de toda filosofia. Tudo,
para ele, começa com o batismo que é um novo nascimento. O ato decisivo não
está no fim mas no início do caminho:
"Como
na corrida dupla dos estados, uma parada e um descanso separam os caminhos em
sentidos opostos, assim também na mudança de vida é necessário que uma morte se
coloque no meio das duas vidas para colocar fim ao que precede e para começar
as coisas sucessivas. Como conseguir descer aos infernos? Imitando a sepultura
de Cristo por meio do batismo" (Ib. XV,35.).
O esquema
básico é o mesmo de Paulo. No capítulo sexto da Carta aos Romanos o Apóstolo
fala da purificação radical do pecado que acontece no batismo e no capítulo
oitavo descreve a luta que, sustentado pelo Espírito, o cristão deve levar pelo
resto da sua existência, contra os desejos da carne, para avançar na vida nova:
"Os que
vivem de acordo com a carne aspiram às coisas da carne; mas os que vivem de
acordo com o Espírito aspiram às coisas do Espírito. De fato, a carne aspira ao
que conduz à morte; mas o Espírito aspira ao que dá vida e paz. É que a carne
aspira à inimizade com Deus, uma vez que não se submete à lei de Deus; aliás
nem sequer é capaz disso. Os que vivem sob o domínio da carne são incapazes de
agradar a Deus [...]. Portanto, irmãos, somos devedores, mas não à carne, para
vivermos de acordo com a carne. É que, se viverdes de acordo com a carne,
morrereis; mas, se pelo Espírito fizerdes morrer as obras do corpo,
vivereis". (Rm 8, 5-13).
Não devemos
admirar-nos se para ilustrar a tarefa descrita por São Paulo, Basílio tenha
usado uma imagem de Plotino. Ela está na origem de uma das metáforas mais
universais da vida espiritual e hoje fala a nós o mesmo que aos cristãos
daquela época:
"Vamos,
retornes a ti mesmo e olhes; e se ainda não te ves bonito, imita o autor de uma
estátua que tem que conseguir a sua beleza: em parte bate com o cinzel, em
parte aplaina; aqui engrossa, ali afina, até quando tenha conseguido expressar
um belo rosto na estátua. Igualmente também tu tires o supérfluo, endireita o
que está torto, e, por força de purificar o que é escuro, faça que se torne
brilhante e não deixe de atormentar a tua estátua até que o divino esplendor da
virtude não brilhe diante de ti" [(Plotino, Enneadi I, 9 (trad. ital. di
V. Cilento, vol. I, Laterza, Bari 1973, p. 108, tradução portuguesa
nossa].
Se a
escultura, como dizia Leonardo da Vinci, é a arte de remover, tem razão o
filósofo quando compara a purificação e a santidade com a escultura. Para o
cristão não se trata porém de alcançar uma beleza abstrata, de construir uma
bonita estátua, mas de trazer à luz e tornar mais brilhante a imagem de Deus
que o pecado tende constantemente a cobrir.
Conta-se que
um dia Miquelângelo, passeando em um pátio de Florênça, viu um bloco de mármore
bruto coberto de poeira e lama. Parou de repente para contemplá-lo, depois,
como iluminado por um súbito clarão, disse aos presentes: "Nesta massa de
pedra está escondido um anjo; quero tirá-lo daí!" E começou a trabalhar
com um cinzel para moldar o anjo que havia vislumbrado. Assim é também conosco.
Somos ainda massa de pedra bruta, tendo acima muita “terra” e muitos pedaços
inúteis. Deus Pai nos olha e diz: “Neste pedaço de pedra se esconde a imagem do
meu Filho; quero tirá-la daí, para que brilhe eternamente do meu lado no céu!”
E para fazer isso usa o cinzel da cruz, nos poda (cf. Jo 15,2)
Os mais
generosos, não só suportam os golpes do cinzel que vêm de fora, mas também
colaboram, o quanto lhes seja concedido, impondo-se pequenos, ou grandes,
mortificações voluntárias e quebrando a vontade velha deles. Dizia um padre do
deserto: "Se queremos ser completamente livres, aprendamos a quebrar a
nossa vontade, e assim, aos poucos, com a ajuda de Deus, avançaremos e
chegaremos à plena liberação das paixões. É possível quebrar dez vez a própria
vontade em brevíssimo tempo e lhes digo como. Você está passeando e vê algo; o
seu pensamento lhe diz: ‘Olha lá’, mas ele responde ao seu pensamento: ‘Não,
não olho!’, e quebra a sua vontade” (Doroteo di Gaza, Insegnamenti 1,20 (SCh
92, p. 177).
Este antigo
Padre tem outros exemplos tirados da vida monástica. Se está falando mal de
alguém, talvez do superior; o teu homem velho diz: “Participes também tu; diga
aquilo que sabes. Mas tu respondes: “Não”. E mortificas o homem velho... Mas
não é difícil alongar a lista com outros atos de renúncia, próprios do estado
ao qual se vive e do trabalho que se faz.
Enquanto se
vive favorecendo os desejos da carne nós nos parecemos aos dois famosos
“Bronzes de Riace”, quando foram encontrados no fundo do mar, todo cobertos de
crustáceos e quase irreconhecíveis como figuras humanas. Se também nós queremos
brilhar, como estas duas obras-primas após a sua restauração, a Quaresma é o
momento oportuno para colocar mãos à obra.
5. Uma
mortificação "espiritual"
Existe um
ponto em que a transformação do ideal de Plotino em ideal cristão permaneceu
incompleta, ou pelo menos pouco explícita. São Paulo, ouvimos, diz: "Se
pelo Espírito mortificardes os feitos do corpo, vivereis." O Espírito não
é, portanto, só o fruto da mortificação, mas também o que a torna possível; não
está só no final do caminho, mas também no início. Os apóstolos não receberam o
Espírito em Pentecostes porque se tornaram fervorosos; tornaram-se fervorosos
porque receberam o Espírito.
Os três Padres
Capadócios, eram basicamente ascetas e monges; Basílio, em particular, com as
suas Regras monásticas (Asceticon!), foi o fundador do monaquismo cenobítico.
Isso os levou a destacar fortemente a importância do esforço humano. O irmão e
discípulo de Basílio, Gregório de Nissa, vai escrever nesta linha: "Na
medida em que desenvolvas tuas lutas pela piedade, nesta mesma medida se
desenvolve também a grandeza da alma por meio destas lutas e destes
esforços”[(Gregório Nisseno, De instituto christiano (ed.
W. Jaeger, Two Rediscovered Works, Leida 1954,
p.46)].
Na geração
seguinte, esta visão da ascese será retomada e desenvolvida por autores
espirituais, como João Cassiano, mas separada da sólida base teológica que
tinha em Basílio e em Gregório de Nissa. "É a partir deste ponto – nota
Bouyer – que o pelagianismo, colocando o esforço humano antes da graça, terá o
seu início"( L. Bouyer, La spiritualità dei Padri,
Edizioni Dehoniane, Bologna 1968, p. 295.) Mas este resultado negativo
dificilmente pode ser atribuído a Basílio e aos Capadócios.
Voltemos
para concluir o motivo que faz com que a doutrina de Basílio sobre o Espírito
Santo seja perenemente válida e hoje, dizia, mais do que nunca atual e
necessária: a sua praticidade e adesão à vida da Igreja. Nós latinos
temos um caminho privilegiado para fazer nossa e transformar em oração este
mesmo tipo de pneumatologia: o hino do Veni Creator.
Ele é do
início ao fim uma contemplação orante daquilo que o Espírito concretamente faz:
em toda a terra e na humanidade como Espírito Criador; na Igreja, como Espírito
de santificação (dom de Deus, água viva, fogo, amor e unção espiritual) e como
Espírito carismático (multiforme nos seus dons, dedo da mão direita de Deus,
que coloca sobre os lábios a palavra); na vida individual do fiél, como luz
para a mente, amor para o coração, cura para o corpo; como nosso aliado na luta
contra o mal e guia no discernimento do bem.
Invoquemo-Lo
com as palavras da primeira estrofe, pedindo-lhe para fazer passar também o
nosso mundo e a nossa alma do caos para o cosmos, da dispersão para a unidade,
da feiúra do pecado para a beleza da graça.
Veni,
Creator Spiritus, Ó vinde Espírito criador;
Mentes
tuorum visita, visita os teus fiéis no profundo,
Imple
superna gratia, derrama a plenitude da graça,
Quae tu
creasti pectora, corações que tu criastes somente para ti
[Tradução Thácio Siqueira]
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